Tratado de ‘Abdu’l-Bahá sobre “modernização” iraniana. Geralmente, em persa, refere-se a ele como Risáli-yi-madaniyyih (O Tratado sobre Civilização). Escrito em 1875, o trabalho foi litografado em Bombaim em 1882 e teve ampla circulação no Irã. Foi publicado anonimamente e não identificado como uma obra especificamente bahá’í – presumivelmente para evitar leitores preconceituosos contra seu conteúdo. A primeira tradução inglesa foi publicada em 1910 em Londres como The Mysterious Forces of Civilization.
O primeiro impulso do argumento de ‘Abdu’l-Bahá é a urgente necessidade do Irã de adotar medidas de reforma baseadas em modelos do Ocidente. O Irã antigo foi um poderoso império, honrado por sua cultura e civilização. Por contraste, o país encontrava-se então em um estado miserável e degenerado, alvo de compadecimento dos outros pelo seu atraso. Injustiça e desgoverno haviam conduzido ao seu declínio. Os iranianos deviam erguer-se de seu torpor e resolver transformar seu país e suas instituições: promovendo EDUCAÇÃO (considerada como sendo de particular importância), indústria, comércio, tecnologia, artes e ciências; estabelecendo leis justas e protegendo os direitos de indivíduos de modo igualitário perante a lei; dando fim à corrupção e aos poderes absolutos de governantes locais, em particular seu poder de ministrar a pena de morte; fortalecendo as relações com outros países, incluindo as grandes potências e governos amigáveis; incrementando ligações comerciais e desenvolvendo recursos e infraestrutura nacionais; e fortalecendo as forças armadas, de modo que seus soldados fossem bem alojados e alimentados, seus oficiais bem treinados e seus armamentos atualizados. Outras nações haviam estado outrora como o Irã naquela época, mas através da adoção de tais medidas elas haviam progredido. Alguns iranianos objetavam que tais reformas envolviam a cópia das práticas de não-muçulmanos e não eram, por isso, islâmicas. Isto não era válido. Havia diversos precedentes islâmicos para a adoção de práticas estrangeiras, e diversos elementos da civilização europeia foram, em todo caso, derivados das raízes islâmicas durante o período medieval. Além disso, podia-se dar justificação alcorânica às reformas tais como a introdução de assembleias consultivas. Aqueles que se opunham à reforma responderiam perante Deus. O rápido progresso do Japão e os continuados atraso e enfraquecimento da China indicavam o contraste entre aquelas nações que modernizaram-se e aquelas que não o fizeram. No contexto do reformismo do século XIX no Oriente Médio, o livro é notável ao advogar o empréstimo do Ocidente enquanto ao mesmo tempo enfatizando o papel fundamental da RELIGIÃO. Intolerância religiosa e secularismo ocidental, ambos foram rejeitados. ‘Abdu’l-Bahá também enfatizou a importância de QUALIDADES ESPIRITUAIS, delineou as características requeridas de LÍDERES RELIGIOSOS e comentou sobre CIVILIZAÇÃO, GOVERNO, LEI, MISSÃO, PAZ E RIQUEZA.
Uma avaliação de como a obra foi recebida entre reformadores iranianos contemporâneos tem ainda que ser realizada. O livro foi escrito em um tempo em que parecia possível uma reforma do Irã – Mirzá Husayn Khán era ainda politicamente influente e o xá Násiru’d-Dín havia acabado de fazer sua primeira visita à Europa (1873). O processo de reforma, entretanto, efetivamente se esgotou no final da década de 1870, e ‘Abdu’l-Bahá evidentemente decidiu não prosseguir em sua intenção original de escrever outros livros sobre temas relacionados – especificamente a educação. À parte de seu contexto especificamente iraniano, o tratado pode ser visto como uma prescrição geral bahá’í para reformas de desenvolvimento em qualquer sociedade.
Peter Smith1 !. A Concise Encyclopedia of the Bahá’í Faith. Oneworld Publications, Oxford, Inglaterra. Ed. 2000, pp. 308-9.
Louvor e agradecimento à Providência, pois dentre todas as realidades existentes Ele escolheu a realidade do homem e a honrou com intelecto e sabedoria, as duas luzes mais brilhantes em ambos os mundos. Por intermédio deste grande dom, Ele, a cada época, tem lançado novas e maravilhosas formas no espelho da criação. Se olharmos objetivamente para o mundo dos seres, tornar-se-á aparente que, de tempos em tempos, o templo da existência tem sido continuamente embelezado com suave graça e distinguido por um esplendor sempre mutante, originados da sabedoria e do poder do pensamento.
Este supremo emblema de Deus está em primeiro lugar na ordem da criação, tendo primazia sobre todas as coisas criadas. Testemunha disso é a Santa Tradição: “Antes de tudo, Deus criou a mente.” Desde o alvorecer da criação, ela foi feita para ser revelada no templo do homem.
Santificado seja o Senhor, Quem através dos raios deslumbrantes deste poder estranho, celestial, fez de nosso mundo de trevas a inveja dos mundos de luz: “E a Terra resplandecerá com a luz de seu Senhor.” Santo e excelso é Ele, Quem fez da natureza do homem a alvorada desta graça ilimitada: “O Clemente ensinou o Alcorão; criou o homem; e ensinou-lhe a eloquência.”
Ó vós que tendes mentes para saber! Levantai vossas mãos suplicantes ao paraíso do único Deus, e humilhai-vos e sede modestos diante d’Ele, e agradecei-Lhe por esta graça suprema, e Lhe implorai que nos socorra até que, na presente época, impulsos divinos possam irradiar da consciência da humanidade, e este fogo divinamente aceso, que foi confiado ao coração humano, nunca se possa extinguir.
Considerai cuidadosamente: todos estes fenômenos altamente variados, estes conceitos, este conhecimento, estes procedimentos técnicos e sistemas filosóficos, estas ciências, artes, indústrias e inventos – todos são emanações da mente humana. Qualquer pessoa que se aventurou mais profundamente neste ilimitado oceano conseguiu sobrepujar o restante. A felicidade e orgulho de uma nação consistem nisto, que ela deve brilhar como o sol no elevado paraíso do conhecimento. “Poderão, acaso, equiparar-se os sábios com os insipientes?” E a honra e distinção do indivíduo consistem nisto, que dentre todas as multidões do mundo ele deve tornar-se uma fonte de bem-estar social. Existe alguma graça concebível maior do que esta para um indivíduo que, olhando para dentro de si mesmo, deve descobrir que pela graça confirmadora de Deus ele tornou-se a causa de paz e bem-estar, de alegria e favor ao seu semelhante? Não, pelo Deus único e verdadeiro, não existe maior bem-aventurança, nem mais completo deleite.
Por quanto tempo flutuaremos nas asas da paixão e do desejo vão; por quanto tempo despenderemos nossos dias como bárbaros nas profundezas da ignorância e da abominação? Deus nos deu olhos para podermos olhar o mundo ao nosso redor e nos segurarmos a tudo o que fará avançar a civilização e as artes. Ele nos deu ouvidos para podermos ouvir e aprender com a sabedoria dos eruditos e filósofos e nos levantarmos para promovê-la e praticá-la. Sentidos e faculdades nos foram concedidos para serem consagrados ao serviço do bem comum, para que nós, agraciados acima de todas as outras formas de vida pela perceptividade e razão, devamos labutar em todos os tempos e em toda a parte, seja grande ou pequena, comum ou extraordinária a ocasião, até que toda a humanidade esteja seguramente reunida na inexpugnável fortaleza do conhecimento. Nós devemos estar continuamente estabelecendo novos alicerces para a felicidade humana, e criando e promovendo novos instrumentos para este fim. Quão excelente, quão nobre é o homem que se levanta para cumprir suas obrigações; quão vil e desprezível é aquele que fecha seus olhos para o bem-estar da sociedade e desperdiça sua vida preciosa na procura de seus próprios interesses egoístas e vantagens pessoais. Suprema é a felicidade do homem, e ele observa os sinais de Deus no mundo e na alma humana, se ele se apressa sobre o corcel de elevados esforços na arena da civilização e justiça. “De pronto lhes mostraremos Nossos milagres em todas as regiões da Terra, assim como em suas próprias pessoas.”
E isto representa a suprema baixeza humana: que ele deva viver inerte, apático, obtuso, envolvido somente com seus próprios instintos mais baixos. Quando ele está nesta situação, ele tem seu ser na mais profunda ignorância e selvageria, tornando-se inferior às bestas selvagens. “São como as bestas, quiçá pior… São, aos olhos de Deus, piores que as bestas, pois são surdos e mudos, e não raciocinam.”
Devemos agora nobremente decidir nos levantar e segurar firmemente todos aqueles instrumentos que promovam a paz e o bem-estar e a felicidade, o conhecimento, a cultura e a indústria, a dignidade, o valor e a posição da inteira raça humana. Assim, através das águas restauradoras da intenção pura e do esforço desprendido, a terra das potencialidades humanas desabrochará com sua própria excelência latente e florescerá em qualidades louváveis, e produzirá e vicejará até tornar-se rival aos roseirais de conhecimento que pertenceram aos nossos antepassados. Então esta terra sagrada da Pérsia tornar-se-á, em todos os sentidos, o centro focal das perfeições humanas, refletindo como se em um espelho a plena panóplia da civilização mundial.
Todo louvor e honra ao Alvorecer da Sabedoria Divina, a Aurora da Revelação (Muhammad) e à santa linhagem de Seus descendentes, pois com os raios largamente difundidos de Sua consumada sabedoria, Seu conhecimento universal, aqueles selvagens habitantes de Yathrib e Bathá foram tirados, milagrosamente e em tão breve período, das profundezas da ignorância, elevados aos pináculos do conhecimento, e tornaram-se os centros das artes e das ciências e das perfeições humanas, e estrelas da felicidade e da verdadeira civilização, resplandecendo através dos horizontes do mundo.
Sua Majestade o xá decidiu no presente momento [1875], trazer o progresso para o povo da Pérsia, seu bem-estar e segurança, e a prosperidade de seu país. Ele espontaneamente estendeu ajuda a seus súditos, demonstrando energia e imparcialidade, esperando que através da luz da justiça ele possa fazer do Irã a inveja do Oriente e do Ocidente, e fazer com que aquele puro fervor que caracterizou as grandes épocas primordiais da Pérsia flua novamente nas veias de seu povo. Como está claro àquele que discerne, o autor, por esta razão, sentiu a necessidade de narrar, por Deus somente e como umtributo a este elevado empenho, uma breve declaração sobre algumas questões urgentes. Para demonstrar que Seu único propósito é o de promover o bem-estar geral, Ele omitiu Seu nome. Uma vez que Ele acredita que a guia em direção à retidão é em si mesmo um ato honroso, Ele oferece estas poucas palavras de aconselhamento aos filhos de Seu país, palavras ditas somente por causa de Deus e em espírito de um fiel amigo. Nosso Senhor, Quem conhece todas as coisas, dá testemunho de que este Servo não pretende outra coisa a não ser o que é justo e bom; pois Ele, um viajante no deserto do amor de Deus, chegou a um reino onde a mão da negação ou do consentimento, do louvor ou da repreensão não podem tocá-Lo. “Certamente vos alimentamos por amor a Deus; não vos exigimos recompensa nem gratidão.”
A mão está velada, no entanto a pena escreve como ordenado;
O cavalo salta à frente, ainda que o cavaleiro esteja oculto.
Ó povo da Pérsia! Olhai aquelas páginas que florescem, que falam de um outro dia, passado há muito tempo. Lede-as e maravilhai-vos; contemplai a grande visão. Naqueles tempos, o Irã era o coração do mundo; era a tocha brilhante flamejando na assembleia da humanidade. Seu poder e glória brilhavam como o amanhecer acima dos horizontes do mundo, e o esplendor de seu conhecimento lançava seus raios sobre Oriente e Ocidente. A palavra do império largamente difundido, daqueles que cingiam sua coroa, alcançava até mesmo os habitantes do Círculo Ártico, e a fama da augusta presença de seu Rei dos Reis humilhava os governantes da Grécia e de Roma. Os maiores filósofos do mundo maravilhavam-se com a sabedoria de seu governo, e seu sistema político tornou-se o modelo para todos os soberanos dos quatro continentes então conhecidos. Ele foi distinguido, entre todos os povos, pela abrangência de seu domínio, foi reverenciado por todos pelas suas louváveis cultura e civilização. Ele era o pivô do mundo, ele era a fonte e o centro de ciências e artes, a nascente das grandes invenções e descobertas, a rica mina de virtudes e perfeições humanas. O intelecto, a sabedoria dos membros individuais desta excelente nação fascinavam as mentes das outras pessoas, o brilhantismo e o gênio perceptivo que caracterizavam esta nobre raça incitavam a inveja do mundo inteiro.
Além daquilo que é objeto de registro nas histórias persas, afirma-se no Antigo Testamento estabelecido hoje entre todos os povos europeus como um Texto sagrado e canônico que no tempo de Ciro, conhecido nas obras iranianas como Bahman, filho da Isfandíyár, as trezentas e sessenta divisões do Império Persa estendiam-se dos confins do interior da Índia e da China aos mais remotos recantos do Iêmen e da Etiópia. Os contos gregos relatam também como este orgulhoso soberano avançou contra eles com um exército incalculável e deixou seus domínios, até então vitoriosos, reduzidos ao pó. Ele fez estremecer os pilares de todos os governos; de acordo com aquela autorizada obra árabe, a história de Abu’l-Fidá, ele conquistou o inteiro mundo conhecido. Está também registrado neste mesmo texto e em outros, que Firaydún, um rei da dinastia Píshdádíyán – quem, de fato, em virtude de suas perfeições inerentes, seu poder de julgamento, a abrangência de seu conhecimento e sua longa série de contínuas vitórias, foi único entre todos os que o procederam e o seguiram – dividiu o inteiro mundo conhecido entre seus três filhos.
Como comprovado pelos anais das pessoas mais ilustres do mundo, o primeiro governo a ser estabelecido na Terra, o mais notável império organizado entre as nações, foi o trono e o diadema da Pérsia.
Ó povo da Pérsia! Acordai de vosso sono embriagador! Levantai de vossa letargia! Sede justos em vosso julgamento: permitirão os ditames da honra que esta terra sagrada, outrora a fonte da civilização mundial, a origem de glória e felicidade para toda humanidade, a inveja do Oriente e do Ocidente, permaneça um objeto de piedade, deplorado por todas as nações? Ela foi outrora o mais nobre dos povos: deixareis a história contemporânea registrar para as eras o seu atual estado de decadência? Aceitareis complacentemente sua desgraça atual, quando ela já foi a terra de todos os desejos da humanidade? Deve ela agora, por causa desta desprezível indolência, desta incapacidade de lutar, desta completa ignorância, ser considerada a mais retrógrada das nações?
Não foi o povo da Pérsia, em tempos distantes, a cabeça e o rosto do intelecto e da sabedoria? Não brilharam eles, pela graça de Deus, como a estrela d’alva nos horizontes do conhecimento Divino? Como é que estamos hoje satisfeitos com esta miserável condição, estamos atraídos às nossas paixões licenciosas, nos cegamos à suprema felicidade, àquela que é agradável aos olhos de Deus, e tenhamos todos ficado absorvidos em nossas preocupações egoístas e na busca de vantagem ignóbil e pessoal?
Esta mais formosa das terras foi outrora uma lâmpada, deixando fluir os raios do conhecimento Divino, de ciência e arte, de nobreza e conquistas elevadas, de sabedoria e valor. Hoje, por causa do ócio e da letargia de seu povo, seu torpor, seu indisciplinado modo de vida, sua falta de orgulho, falta de ambição – sua brilhante prosperidade foi totalmente eclipsada, sua luz tornou-se escuridão. “Os sete céus e as sete terras choram pelo poderoso quando ele é derrotado.”
Não se deve imaginar que o povo da Pérsia é inerentemente deficiente em inteligência, ou que, em perceptividade e compreensão essenciais, sagacidade inata, intuição e sabedoria, ou capacidade ingênita, ele seja inferior aos outros. Deus o proíba! Pelo contrário, eles sempre sobrepujaram todos os outros povos em talentos concedidos de nascença. Além disso, a própria Pérsia, do ponto de vista de seu clima temperado e belezas naturais, suas vantagens geográficas e seu rico solo, é abençoada em um grau supremo. O que ela urgentemente necessita, no entanto, é de profunda reflexão, ação resoluta, educação, inspiração e encorajamento. Seu povo deve fazer um esforço massivo e seu orgulho deve ser despertado.
Hoje, em todos os cinco continentes do globo é a Europa e a maior parte da América que são renomadas por sua lei e ordem, governo e comércio, arte e indústria, ciência, filosofia e educação. No entanto, em tempos antigos